Deuses, Vampiros, Invisibilidade e Imortalidade… e os Sujeitos Modernos.

Há muito tempo atrás me deparei com um texto do Paulo Coelho cujo título era “Sobre a imortalidade”. Esse texto me marcou pois ele fazia uma (re)leitura do mito dos vampiros e a imortalidade por um prisma diferente daqueles mais tradicionais, ao qual estamos mais do que acostumados.

“Como o ser humano responde às mudanças? Mal. Sempre muito mal.”

É assim que começa seu texto e já na introdução podemos compreender a leitura que ele irá fazer. Esta se refere à questão da mudança, e para tanto ele utiliza o mito do vampiro como seu instrumento de análise.

O valor do texto, ao meu ver, reside no fato de que ainda que seja fácil fazer uma leitura do mito do vampiro e da imortalidade a partir do prisma da dificuldade das mudanças, como disse, o autor o faz por um ângulo não convencional.

Por exemplo, é comum encontrarmos leituras dos mitos dos vampiros que fazem uma análise da questão da imortalidade pelo viés da renovação. O vampiro se mantém imortal pois extrai a energia vital dos demais e com isso se renova. É uma leitura da atualização e não da estagnação, similar a tantas outras como a das bruxas que sacrificam crianças (extraem a energia do jovem), ou mesmo o mito da Fênix que morre para renascer das cinzas.

Não é essa a abordagem adotada pelo autor que ao propor tal releitura o subverte e o torna mais atual. Ele nos indica que a renovação, parte essencial da vida, vem com um preço, o da morte, e a morte, não apenas em seu sentido literal, como etapa final da vida, está intrinsecamente ligada ao processo do viver. Em suma, viver é morrer constantemente, é um eterno fechamento de ciclos (e não a sua perpetuação) e abertura ao novo, ao desconhecido. É disso, por exemplo, que se trata em essência uma terapia.

É assim que o autor nos apresenta seu personagem, como uma figura trágica. Imortal, pois, como ele nos diz:

“… ele parou no tempo, mas o mundo continua a se transformar ao seu lado. Tudo aquilo com que estava acostumado começa a mudar, e mesmo tendo todo o tempo do mundo para adaptar-se a essas mudanças, o vampiro desejou a imortalidade justamente porque estava contente com o mundo em que vivia; ele não tem nenhum interesse em acompanhar estas mudanças. ”

Ou seja, a eternidade é compreendida como o fim das relações, no sentido de privação do efeito da diferença do outro. Seu texto me chamou a atenção pois ele, de certa forma, ia de encontro com diversas outras teorias e vertentes que buscavam explicar a forma como o sujeito se relaciona com o mundo a sua volta a partir da concepção que forma deste e, em contrapartida, como tal concepção reflete sobre sua noção de si mesmo.

Tal noção de imortalidade como uma forma de estagnação, como consequência de uma relação com o mundo que foi interrompida é algo que pode parecer estranho ou contra intuitivo inicialmente, pois em nossa concepção romântica e em nossos anseios mais íntimos para com a imortalidade, tendemos a associá-la a um processo de (eterna) renovação. No entanto, tal como abordada pelo autor, ela tem muito mais a dizer sobre nós mesmos e os desenvolvimentos pelos quais a humanidade tem passado nos últimos séculos, que seu aprofundamento se torna indispensável para a compreensão de nós mesmos.

 Do sujeito-fora-do-mundo ao sujeito-no-mundo.

A primeira instância, o que chama a atenção até aqui é que fomos apresentados a uma noção de imortalidade que contradiz nossas concepções mais corriqueiras sobre a mesma. Tal noção pode parecer estranha, mas ela é bem mais condizente com a “realidade” e tem muito mais a dizer sobre nós, nossa relação com o mundo e nossa história coletiva do que sua contraparte romântica da imortalidade pelo viés da renovação. Enquanto a segunda diz algo que gostaríamos que fosse verdade e não é, a primeira fala algo sobre uma verdade que não queremos admitir.

Vejamos essa questão por um outro ângulo, principalmente no que diz respeito a nossa história coletiva, as mudanças que ocorreram em nossa sociedade e suas implicações na concepção de mundo e de sujeito.

No que concerne aos interesses deste texto, a principal mudança em nossa história foi aquela que veio a ser conhecida como revolução científica, mais especificamente, aquilo que o pai da sociologia, Max Weber, chamou de “desencantamento do mundo”.

“Isto significa: o desencantamento do mundo. Ninguém mais precisa lançar mão de meios mágicos para coagir os espíritos ou suplicar-lhes, feito o selvagem, para quem tais forças existiam. Ao contrário, meios técnicos e cálculo se encarregam disso. Isto, antes de mais nada, significa a intelectualização propriamente dita. ” (WEBER, 2009, p.49).

Em síntese, é a substituição da explicação teológica “mágica” transcendental pela racionalidade científica, que tem como característica principal explicar os fenômenos, não pela influência de agentes extramundanos, mas sim pela relação dos elementos intramundanos.

Dentre as implicações dessa mudança a mais significativa para essa análise foi aquilo que Louis Dumont (1985) identificou como a transição do “indivíduo-fora-do-mundo” ao “indivíduo-no-mundo”.

“Não há dúvida sobre a concepção fundamental do homem nascido do ensinamento do Cristo: como disse Troeltsch, o homem é um indivíduo-em-relação-com-Deus, o que significa, para nosso uso, um indivíduo essencialmente fora-do-mundo. ” (DUMONT, 1985, p. 39)

Dito de forma simplificada, isso se dá na medida em que, ao questionar os valores transcendentais e se ver frente a um mundo a princípio “sem valores” (ou pelo menos sem valores transcendentais), o homem moderno se percebe desamparado (sem garantias) e se vê obrigado a se defrontar com a sua responsabilidade frente a esse mundo. O mundo pós revolução científica não é mais como é, pois, foi assim que Deus o quis, mas sim em virtude da relação de seus elementos internos o que confronta o homem com sua responsabilidade na construção desse mesmo mundo. É o catalisador de uma série de desdobramentos posteriores dentre os quais se destaca a instauração da sociedade contratual que tem como premissa básica justamente a noção de indivíduo (livres e responsáveis) como núcleo de referência.

Nota-se, portanto, os fundamentos básicos para todas as grandes mudanças que irão ocorrer, como por exemplo, a deposição da monarquia. Pois sendo o homem responsável pelo que é, não podendo mais recorrer a “instâncias superiores” para qualificar/justificar sua posição social, ou sua predileção, então o que temos a princípio é um tipo de “nivelamento” no qual todos os homens são, se não na prática, mas pelo menos em princípio, iguais.

Um mundo em perpétua mutação

Quando falamos sobre a transição de um tal sujeito-fora-do-mundo para outro sujeito-no-mundo, o que não podemos perder de vista são as suas consequências. Tal transição propiciou, ou melhor, desencadeou, uma revolução em nossa compreensão de mundo e de nós mesmos e colocou em movimento um mundo que em muitos aspectos era previamente estagnado. Isso se dava, pois, como apontado por Dumont, sendo o homem um sujeito em relação com Deus, ainda assim, essa relação era em sua natureza unilateral.

Deus a todos influenciava e em contrapartida por nada era influenciado (afinal, ele era perfeito). Os valores do mundo oriundos de Deus eram, portanto, igualmente imutáveis. As coisas eram como eram, pois, assim Deus o quis e não cabia ao homem questioná-las, mas sim apenas se adequar a elas.

A lição que podemos tirar dessa imagem de mundo pré-revolução científica é que o mesmo era concebido como imutável em virtude de uma relação deficitária entre homem e Deus, e que o mundo muda quando concebemos uma relação entre seus elementos. Se os valores vinham de Deus, e se Deus era perfeito (não era influenciado pelo homem) então, os valores se mantinham como estão. Ao buscar a explicação da realidade não mais a partir de Deus, da ação de Deus sobre o mundo (de valores e realidades de ordem transcendentais), mas sim a partir da relação dos elementos intramundanos, dos elementos entre si, então as coisas do mundo se põem em movimento e mudam por estarem em relação entre em si.

Ou seja, que toda relação pressupõe mudança, e que se algo não muda, assim como nosso vampiro, é porque deixou de se relacionar, parou de se deixar influenciar pela diferença do outro, estagnou. A imortalidade no sentido de continuidade do mesmo, de perpetuação, assim como a do nosso vampiro ou a de Deus, pressupõe um corte na relação. A imortalidade é a negação do outro, é a perpetuação do eu que enclausurado em si é cego ao que o outro trás de diferente. Em outras palavras, a imortalidade é a morte definitiva. Aqui sim, a morte sem renovação, pois viver implica mudar, e mudar implica estar envolvido numa cadeia de relações que induz a mudança, que enterra o velho e abre espaço para o novo. Viver é estar em relação e estar em relação é, em essência, se deixar afetar pela diferença do outro.

Se podemos extrair algo de tal transição entre essas duas concepções de mundo, o que não podemos perder de vista é que no mundo pré-científico a mobilidade social era praticamente nula justamente pelos princípios aqui expostos. Pois se o sujeito é o que Deus fez dele, então, sua situação não deve ser questionada, pois como uma mudança implica uma relação, e se somente Deus influencia o mundo, mas o mundo não influencia Deus, logo, os valores do mundo permanecem os mesmos, como forma de “emanação divina”.

Mas se os sujeitos são o que estes fazem de si, individual e coletivamente, então sua posição social é determinada não por um tipo de ordenação divina, mas pela relação estabelecida entre os homens, e a partir de então, sua posição social não é mais um destino, uma “condenação”, mas sim uma dentre múltiplas possibilidades. Sua posição passa a poder ser questionada.

O que marca essa transição é basicamente a diferença entre o “ser” e o “estar”. O ser é o que é e não pode mudar, pois ele “é”. Já o estar é um momento transitório entre dois estados dentro de um fluxo constante. O sujeito não é, ele está, e esse estado atual é um reflexo de suas relações, assim como o que ele vier a ser, será um reflexo das novas relações que vier a estabelecer. O sujeito (e o mundo) estão em constante mudança.

O Anel de Gyges e o Retrato de Dorian Gray

Em um mundo em constante mudança em virtude da relação de seus elementos internos, não demorou muito para que o próprio homem tivesse sua posição social questionada. Não podendo mais usufruir de uma suposta predileção divina (ou não) para justificar sua posição social, análises não faltaram para esmiuçar e compreender a maneira como os homens se condicionam mutuamente.

Uma dessas maneiras, que veio a ser o objeto de estudo da psicanálise, é a maneira como os sujeitos são capturados e condicionados pelo olhar do outro. Nosso vampiro, assim como o Deus do sujeito-fora-do-mundo, se configura como um observador apático do mundo a sua volta, que a todos observa, mas não é observado por ninguém (não é capturado e condicionado pelo olhar de ninguém), logo, não muda. Imortal, pois transcendente das relações do mundo.

Esse tema do observador que não é observado permeia a história da humanidade aparecendo em diversos momentos, sobre diferentes formas geralmente associado a questão da moralidade, como por exemplo no segundo livro da República de Platão, no mito do anel de Gyges que conferia o poder da invisibilidade a seu portador. Outras versões podem ser encontradas na trilogia do Senhor dos Anéis de Tolkien, inspirada no anel de Gyges, no olho que tudo vê da maçonaria e também no panóptico de Jeremy Bentam que Foucault analisa exaustivamente. Tais “contos” exprimem um anseio humano de romper com o olhar constituinte do outro e fazem alusão a uma suposta autoconstituição, de um certo ideal de sujeito que supostamente rompe com a relação-do-mundo. É geralmente associado à questão da moralidade devido ao fato de que o sujeito moral seria, então, aquele que não precisaria do olhar do outro para agir corretamente, que sua moralidade partiria “de dentro”.

Pode soar estranho à primeira vista, que nessas duas histórias, do anel de Gyges e em seu derivado, o Senhor dos Anéis, tal anel que confere o poder da invisibilidade é tido como o maior dentre todos os poderes. Levando-se em consideração todos os poderes que a imaginação pode conceber ou que os filmes modernos de super-heróis já nos apresentaram, a mera invisibilidade soa como um poder deverás simplório em comparação. Como pode então que tanto Platão como Tolkien tenham concebido a invisibilidade tamanho prestígio chegando a considerá-lo como o maior dentre todos os poderes imagináveis?

A resposta para essa questão jaz, como vimos, no fato de que simbolicamente a invisibilidade representa a divindade. Tornar-se invisível é tornar-se Deus. É estar para além do olhar do outro, para além das relações que nos constituem. É transcender das relações e com isso alcançar a tão almejada imortalidade. Encontramos também essa relação entre invisibilidade e imortalidade/divindade no mito do vampiro na medida em o espelho não reflete sua imagem, ou seja, que a luz (olhar) que incide sobre ele não o afeta mas o perpassa.

Fazendo um contraponto interessante com esse anseio humano da invisibilidade e amoralidade de um lado, e o dilema do nosso vampiro no que diz respeito a imortalidade e a mudança do outro, temos a história do Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde.

Nesta, o protagonista da história, o jovem e belo narcisista Dorian Gray, influenciado por um aristocrata hedonista bon vivant, conclui que a beleza (e os prazeres provenientes desta) é o verdadeiro sentido da vida, e num momento no qual estava tendo seu quadro pintado, faz um desejo para que a ordem natural das coisas se inverta, que este (o quadro) envelheça ao invés de si, o qual é atendido.

Primeiramente, o que devemos prestar atenção aqui é a relação que a história evidencia sobre a que estabelecemos com a(s) nossa(s) pintura(s). Uma pintura, uma foto ou um vídeo é em essência a tentativa de preservação de algo, um tipo de imortalidade. O pedido de Dorian nada mais é “que eu, ao invés da minha imagem no quadro, seja imortal”. Tais artifícios (pintura, foto, vídeo) visam congelar um determinado momento, torná-lo isento das influências do tempo aos quais nós estamos sujeitos.

No entanto, ainda que o desejo de Dorian seja atendido, sabemos que a imortalidade vem com um preço. Não é à toa que Dorian é descrito como um narcisista, pois assim o sendo, seu olhar é voltado apenas para si, para seus desejos e vontades. Sua imortalidade pode ser compreendida como um enclausuramento em si, e obviamente, o desenrolar da história é uma análise das consequências de tal atitude.

Os excessos e crueldades exercidos por Dorian em sua busca por prazer refletem não em si, que agora imortal está isento de tais efeitos, mas sobre o quadro que deveria permanecer inalterado. De acordo com que Dorian vai se afundando cada vez mais num mundo a princípio sem consequências, no qual aqueles a sua volta sofrem as dores de suas ações, é o quadro quem se desfigura pelo reflexo de suas ações.

A história termina com Dorian não mais sendo capaz de se isentar da responsabilidade dos seus atos na medida em que esses vão se aglomerando cada vez mais a ponto de sua “invisibilidade emocional” não mais poder protegê-lo, e num ato de desespero e tentando dar um fim a tudo aquilo ele apunhala o retrato que evidencia sua natureza grotesca. Os criados da casa ouvem um grito e entram no quarto. Ao entrarem na sala, os servos encontram um velho desconhecido, esfaqueado no coração, seu rosto e figura estão secas e decrépitas e ao seu lado, está o retrato de Dorian Gray, que regressou à sua beleza original.

Conclusão

O retrato de Dorian Gray assim como o nosso vampiro é uma história de imortalidade alcançada através da invisibilidade do olhar do outro. É também uma história de excessos possíveis apenas quando o olhar do outro não age mais como entrave para nossos desejos.

No diálogo de Platão sobre o anel de Gyges, a conclusão de Sócrates não poderia ser mais apropriada. Ele conclui que o homem que abusa do poder do Anel de Gyges de fato se tornou um escravo de seus apetites, enquanto o homem que escolhe não o utilizar permanece racionalmente em controle de si mesmo e, portanto, feliz.

A beleza da transição de mundo propiciada pelo advento da revolução científica, do sujeito-fora-do-mundo para o sujeito-no-mundo, do ser para o estar, é a apreciação do momento presente. A lição que podemos tirar disto é que talvez devemos tentar inverter a questão, de ao invés de tentar sermos Deuses, almejar uma suposta imortalidade, talvez devêssemos tentar ser mais humanos.

Concluo esse já demasiado longo artigo com uma citação de um filme que possui uma passagem que gosto bastante e que acredito toca no cerne da nossa questão. A entender, a valorização do presente transitório e não a perpetuação de um passado nostálgico, ou mesmo o anseio de um futuro incerto.

“Os deuses nos invejam. Eles nos invejam porque somos mortais. Porque qualquer momento pode ser nosso último. Tudo é mais bonito porque a morte nos espera. Você nunca será mais encantadora do que é agora.” – Aquiles, Troia. 2004