Por que os terapeutas passam tarefas aos clientes… e por que é tão difícil cumpri-las?

Tarefas terapêuticas são, como o próprio nome diz, tarefas dadas pelos terapeutas aos clientes que visam estender o trabalho feito durante a sessão e com isso quebrar um pouco a tendência e risco que toda terapia possui de ficar “apenas no verbal”. Sua finalidade, tal como um dever de casa de escola, é a de através da repetição e ação motora, ajudar a desenvolver novos hábitos dentre aquilo que o cliente traz como demanda.

Um exemplo relativamente drástico, mas que as vezes se faz necessário, refere-se a casos extremos de pessoas com obesidade que chegaram a tal ponto que parte de seu tratamento envolve colocar cadeado na geladeira e armários com o intuito de restringir seu acesso aos alimentos e limitar suas possibilidades de levar a termo seus ímpetos alimentares.

Ao ler sobre esse exemplo, você talvez possa pensar que tais medidas não se aplicam a você. Que você de certa forma está “acima disto”. No entanto, existe uma série de outros exemplos menos drásticos, tais como, sugerir a um cliente com dificuldades para estudar em casa que adote o hábito de estudar na biblioteca da faculdade para com isso limitar as possibilidades de distração, ou então, discutir diferentes estratégias para configurar um despertador para que ele consiga acordar no horário necessário (por exemplo, em um destes casos, descobri junto ao cliente um aplicativo de despertador que só desligava caso esse andasse por um determinado tempo pela casa com o celular na mão, o que implicava, que este deveria estar acordado).

O que estes exemplos possuem em comum é que eles expressam três coisas:

  1. Eles funcionam na lógica da “tentativa e erro”, o que implica que o terapeuta não possui, de antemão, a resposta (solução) para o problema em questão. Algumas estratégias podem funcionar para uns, mas não para outros, logo o trabalho muitas vezes requer que se esteja pelo menos disposto a tentar diversas alternativas até que se chegue numa que funcione. O ponto chave aqui, portanto é estar “aberto para tentar”.
  2. Eles admitem uma certa incapacidade (ou dificuldade) do sujeito em por si só, de “internamente” resolver a questão.
  3. Consequentemente, eles tendem a fazer uso de elementos “externos” ao sujeito, tais como cadeados, despertadores, ou por exemplo, pedir ajuda a terceiros.

A princípio, tomando como referências os exemplos dados, poderíamos então supor que as tarefas sejam algo relativamente fácil de se cumprir. No entanto, não é isso que se vê na prática. Muitos clientes quando lhes é passado uma determinada tarefa relutam em cumpri-la. Em parte tal relutância pode ser explicada por uma série de fatores, tais como:

  • A concepção que muitos clientes possuem da terapia, de que a finalidade desta é de meramente desabafar, o que faz com que muitos clientes tenham dificuldade de “agir no mundo” a partir daquilo que trabalharam na terapia. De fato, muitos clientes parecem segmentar suas vidas no que diz respeito a terapia, mantendo esta como algo à parte de suas vidas fora desta, não “misturando as coisas”.
  • Ao fato de que muitas tarefas, de fato, soam “infantis”. Colocar cadeados em lugares que possuem comida, baixar um aplicativo de despertador que só desligue se eu andar pela casa, ou envolver terceiros pedindo ajuda, de fato, refletem certa “insuficiência” por parte da pessoa, como se esta não tivesse conseguido dar conta sozinha do problema em questão.

A própria busca pela terapia em si é de certa forma um reconhecimento disto, no entanto, a terapia ainda que seja um lugar seguro e sigiloso para se lidar com tais questões, não deve ser um substituto/fuga da vida, mas sim uma etapa intermediária de preparação/retorno para a mesma. Tal como os terapeutas dizem que uma boa mãe (ou mãe suficientemente boa) é aquela que vai se tornando gradualmente desnecessária, assim também deve ser a terapia.

Sendo assim, uma das principais características das tarefas terapêuticas é que as mesmas tendem a ser relativamente simples. Na verdade, quanto mais simples melhor, isso porque não apenas estas devem levar em consideração a tendência dos seres humanos de estabelecerem metas grandiosas para si e desistirem logo no início por fracassarem, como também o fato de que tais tarefas devem “esbarrar” em dificuldades emocionais dos clientes, o que tende a tornar o relativamente simples em algo emocionalmente complicado.

No entanto, independentemente de nossos esforços, tanto no que diz respeito ao cuidado em desenvolver e sugerir algo que faça sentido para o cliente, quanto em relação a intensidade da tarefa, buscando respeitar o tempo e dificuldades destes frente as mesmas, é mais comum do que gostaríamos de admitir, que muitos clientes hesitem em colocar em prática tais tarefas relativamente simples.

Em parte essa relutância é de se esperar no sentido que as tarefas são desenvolvidas e propostas justamente em cima da dificuldade que o cliente apresenta e que, justamente por se tratar de uma dificuldade, o mesmo não irá adotá-la de bom grado. Ou então, em virtude de tais tarefas em grande parte parecerem “bobas”. Sendo assim, muitas vezes cabe ao terapeuta contornar essa “resistência” pelo viés da insistência/persistência e conseguir demonstrar seus benefícios, mesmo apesar de sua aparente frivolidade.

Ainda assim a impressão que se fica é que a tarefa em si, talvez devido a sua simplicidade, refletisse sobre o cliente uma luz negativa. Como se o ato de executá-la, ou melhor, de ter que executá-la, fosse degradante para a pessoa ou, como disse um de meus clientes, “me sinto ridículo por ter que fazer isso” de “não ter controle de mim mesmo, de não conseguir me forçar a estudar quando quero, ou de acordar quando necessário”.

As tarefas terapêuticas, e principalmente os instrumentos externos que utilizamos, de certa forma evidenciam que a pessoa por si só “não deu conta”, que ela teve que recorrer à artifícios para suceder numa determinada tarefa. Por que isso acontece? Por que um cliente, frente a sugestão de uma tarefa de certa forma pequena e insignificante, não vê a mesma como tal e por isso mesmo se permite fazê-la, ao invés de, como parece acontecer, se sentir pequeno e insignificante por ter que fazê-la?

A resposta para esse questionamento, como veremos, jaz justamente em um dos fundamentos da própria terapia, o que não é de se estranhar o porquê então esta prática tenha vindo a fazer uso de tais “artifícios ridículos” e, consequentemente, o porquê da importância destes para o trabalho terapêutico. Vejamos essa questão a partir da história (mito) de Ulisses e as Sereias.

O mito de Ulisses e as Sereias

Uma das histórias que gosto de contar aos meus pacientes quando me defronto com suas resistências para colocar em prática as tarefas que combinamos durante a sessão é o mito de Ulisses e as Sereias, pois acredito que este traz consigo uma lição que julgo apropriada para tais situações.

O mito em questão conta a história do rei de Ítaca, Ulisses, que era tido como o homem mais inteligente e sagaz da antiguidade grega, o que o colocava em posição de grande prestígio dentre o seu povo e soberano. Após terminada a guerra de Tróia na qual este serviu como conselheiro do rei Agamemnon, Ulisses partiu em uma jornada de retorno para casa que durou nada mais do que 10 anos.

Dentre os diversos empecilhos que impediram seu retorno para casa durante esse período encontramos a história de Ulisses e as sereias. Nessa história, Ulisses e sua tripulação iriam passar próximo ao lar das sereias que, segundo dizia a lenda, eram tão lindas e cantavam com tanta doçura que atraíam os tripulantes dos navios que por ali passavam, fazendo com que os navios colidissem com os rochedos e afundassem.

Ulisses, conhecedor da lenda das sereias e sabedor do perigo que lhes aguardavam, foi aconselhado por sua tripulação para desviar sua rota para longe de tal lugar afim de evitar um fim trágico. Ainda assim ele insistiu para que o navio permanecesse na mesma rota para que ele pudesse escutar o belo canto das sereias. No entanto, não sem tomar as devidas precauções!

Ulisses então ordenou que a sua tripulação o amarrasse ao mastro do navio e que todos da tripulação tapassem os ouvidos com cera, para que estes não pudessem escutar tanto o canto das series quanto as ordens do Rei de Ítaca para, por exemplo, desviar o curso do navio para os rochedos, uma vez que ele estaria desprotegido do encanto das sereias. E assim, amarrado ao mastro do navio, ensandecido pelo canto das sereias, Ulisses se tornou o único homem na história a escutar e sobreviver às vozes divinas.

Gosto de compartilhar este mito com meus clientes pois, de certa forma, ele reflete a situação a qual eles (e todos nós) se encontram. Nele temos:

  • Um personagem (Ulisses)
  • Uma intenção/desafio (escutar o canto das sereias)
  • E principalmente, uma lição de humildade no reconhecimento de suas próprias limitações, o que em último caso foi justamente o que lhe permitiu suceder em seu desafio.

Lembre-se que Ulisses era tido como a pessoa mais inteligente e sagaz de sua época, e que frente ao perigo do lar das sereias, ao invés de dizer: “Que se dane o perigo, eu sou o Ulisses, eu tenho controle sobre mim mesmo e minhas vontades e vou provar isto passando pelo lar das sereias e resistindo a sua tentação”, ele aceitou suas limitações, se amarrou no mastro e tapou com cera o ouvido de toda sua tripulação. Ulisses apenas sucedeu em sua provação porque foi humilde o suficiente para admitir que mesmo ele, o melhor dentre todos os homens, ainda assim não era imbatível, e se permitiu fazer uso de “artifícios ridículos”.

As feridas narcísicas

Ao longo do desenvolvimento da teoria psicanalítica, o seu criador Freud chegou num ponto ao qual se viu frente a uma descoberta, a do inconsciente, que o fez proclamar, com um certo grau de “auto engrandecimento”, que os desenvolvimentos científicos até aquele momento haviam disferidos três dolorosos golpes ao narcisismo da humanidade.

O primeiro, com a teoria de Copérnico, havia deslocado o lugar privilegiado que havíamos ocupado até então de centro do universo. O segundo, com Darwin, nos legou a condição de mero produto do acaso. Não somos seres especialmente criados, mas apenas resultado da evolução natural dos seres. O terceiro golpe, segundo Freud, teria sido desferido pela psicanálise e a descoberta do inconsciente, que enquanto tal nos diz que o ego não é nem mesmo senhor em sua própria casa e que o que impera e determina a vida dos seres humanos é o inconsciente.

À parte a crença ou não no inconsciente da psicanálise, a questão em foco é que o ser humano tem uma tendência de se auto engrandecer, de superestimar as suas qualidades e subestimar seus defeitos para proteger o próprio ego de uma visão menos favorável de si mesmo (salvo em casos de depressão e melancolia, mas estes seriam tema para um outro artigo).

Voltando então a finalidade da terapia, esta seria a de justamente expor o sujeito as suas feridas narcísicas, mais especificamente, as defesas que ela construiu ao longo da vida para se proteger de tais feridas, que refletem a sua própria situação de desamparo e dor frente a uma vida/história que apesar de seus diversos esforços para se adequar, seja às expectativas de uma mãe controladora ou de um pai exigente (sempre nossos primeiros modelos de relacionamento, daí sua importância), muitas vezes estão para além do seu controle. Que suas tentativas de “negociar com a vida”, talvez se tornando algo mais próximo de um ideal que sua mãe possa ter de uma filha, para quem sabe assim se sentir mais “amada” pela mãe (ou, o que dá no mesmo, se sentir menos “não amada”), muitas vezes tem como consequências um afastamento de si mesmo, e é isso que muitas vezes trás as pessoas até nós. No entanto, temos um efeito colateral de nossos esforços que é: A percepção de nossos esforços para sermos amados traz atrelado consigo o reconhecimento de nossas deficiências. Eis, portanto, o paradoxo terapêutico. Todos querem ser amados em sua totalidade, no entanto escondem partes de si com medo de não serem.

Em se tratando, então, das tarefas terapêuticas, muitos clientes relutam em cumpri-las, pois, o próprio ato de fazê-las evidencia suas próprias insuficiências, sua falta de controle de seus corpos e suas vontades. É o mesmo motivo que leva algumas pessoas a evitar procurar a terapia quando em necessidade, ou tomar um determinado remédio, pois tais atitudes implicam num reconhecimento das próprias fraquezas, e muitas pessoas preferem se fingir de fortes a se mostrarem fracas/vulneráveis.

Nesse sentido, o cumprimento da tarefa terapêutica em si é um bom indicativo do prognóstico do tratamento, na medida em que fazê-lo é sim se “permitir ser ridículo”, e como já dizia o ditado, “é preciso ser muito forte para se permitir ser fraco”. Num mundo aonde estão todos fingindo ser fortes, talvez seja aquele que admite que não é o único a escutar o canto das sereias.